Na edição de outubro desta revista, o nosso colega de profissão e de coluna na Cultivar, Dr. Décio Gazzoni e a Dra. Mariangela Hungria, publicaram um importante artigo alertando para o risco presente aos insumos biológicos no Brasil, com a produção de “produtos” biológicos na própria fazenda, a produção “on farm”, como foi denominada.

A ANPII já publicou diversos artigos sobre o tema, inclusive nesta coluna, e não poderia deixar de fazer coro aos citados autores, pela importância e oportunidade do tema.

Justamente agora, quando os biológicos tomam enorme importância no mundo todo e quando  o Brasil necessita mostrar evidências de comprometimento com o meio ambiente, tramita na Câmara dos Deputados o PL 658/21, que desorganiza o setor de inoculantes no país, trazendo riscos para a eficácia de uma tecnologia que se consagrou no Brasil, Argentina e Uruguai e passou a ser admirada no mundo todo pelas enormes vantagens econômicas e ambientais que trouxe para o país.

A jornada vitoriosa começou em 1964, com a criação da Associação Latino Americana de Rizobiologia, que traçou o protocolo que viria a ser adotado até hoje nos três países, fazendo com que se cultivem mais de 50 milhões de hectares de soja com o uso quase zero de fertilizantes nitrogenados, usando-se as bactérias fixadoras de nitrogênio como fonte do nutriente necessário em maior quantidade pela cultura. Estas bactérias, se bem utilizadas, permitem a obtenção do máximo de produtividade que o potencial genético das plantas e o nível adequado dos demais insumos permite, com uma enorme economia para o agricultor e para a sociedade.

Este patamar de excelência foi obtido por um trabalho contínuo, sistêmico, orgânico, desenvolvido durante anos por diversas organizações, começando na pesquisa, passando pela área regulatória, pela difusão de tecnologia e chegando à uma área industrial moderna e dinâmica. Hoje, no Brasil, mais de 80% dos plantadores de soja utilizam o inoculante em sua plenitude, com o uso anual do insumo, tornando o Brasil líder mundial no uso de inoculantes.

A produção de inoculantes é uma atividade altamente tecnificada, com a necessidade de pessoal qualificado, prédios com fluxo de material biológico que evite trânsito entre áreas estéreis e não estéreis, com filtros absolutos para a injeção de ar esterilizado nos reatores, equipamentos que permitam esterilização a 120 graus, enfim, todo um aparato que permita levar ao solo as cepas de Bradyrhizobium, Azospirillum e outras bactérias que tenham elevada eficácia, comprovada por testes de eficiência agronômica.

Tudo isto vem sendo feito por toda a cadeia de inoculantes: uma excelente seleção de cepas, difusão para o que o agricultor use, e use bem, o inoculante no campo, uma área regulatória que incorpora as inovações no aparato legal e uma indústria moderna, que vem melhorando a qualidade dos inoculantes conforme a necessidade de mais produtividade nas lavouras.

E todo este cabedal de bons resultados está sendo ameaçado pela flexibilização da produção “caseira”, ou “on farm”, para entrar na nomenclatura anglicista. O novo projeto de lei abre um largo espaço para a produção de insumos biológicos para uso próprio na fazenda, com a condição que faça registro e tenha responsável técnico.

Se o MAPA já não consegue, em vários anos, fazer uma forte fiscalização nas 15 ou 20 empresas espalhada pelo país, situadas nas capitais ou em grandes cidades, como vai fiscalizar dezenas e talvez centenas de propriedades espalhadas por todo o imenso território? Especialmente agora com a atual situação financeira dos governos, onde procuram enxugar ao máximo as despesas operacionais. É o tal do “me engano que eu gosto”.

Os autores acima citados relembram, com muita propriedade, o exemplo anterior, quando uma promissora tecnologia, a do uso de Baculovírus, foi mal conduzida em sua implantação e acabou deixando de ser utilizada. A primeira empresa a fazer acordo com a Embrapa, não teve condições de competir com uma pseudo produção caseira, que desmoralizou a tecnologia. Somente agora, 20 a 30 anos após, empresas estão retomando, em bases técnicas, a produção deste inseticida biológico. Como dizem muito bem os autores: “…a lição não foi aprendida”.

As análises e observações feitas com os produtos produzidos de forma errada tem demonstrado, além da falta dos microrganismos alvo, uma ampla mistura de outros organismos oportunistas, que, por terem um crescimento muito mais rápido e serem menos exigentes em condições de meio de cultivo, crescem e tomam conta do pseudo reator. No final, o agricultor estará jogando em sua lavoura um coquetel de microrganismos, alguns com potenciais riscos para humanos e para o ambiente e não terá os benefícios dos microrganismos pretendidos.

A ANPII, obviamente, não é contra que novas empresas surjam no mercado brasileiro. Pelo contrário, acolhe novas empresas, novos associados. Mas empresas estruturadas, registradas no MAPA e com todas as condições para de fato produzir inoculantes de verdade.

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